domingo, 14 de junho de 2009

A Teletela está entre nós

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George Orwell nos alertou em 1948, no seu livro “1984”(0), sobre as possibilidades de existência de um mundo totalitário, onde os Estados concetrariam todo poder político, e os indivíduos seriam controlados com o auxílio da aparelhagem tecnológica existente.

A cena, logo no iniciozinho do livro, em que ele descreve a chamada Teletela é uma amostra desse mundo. Artistas, poetas, escritores são bons nesta arte de prever esse tipo de futuro sombrio. Antes de Orwell muita gente já havia percebido que a tecnologia (que tantas esperanças dá ao ser humano, no sentido de tornar o mundo mais seguro para viver, diminuindo as dificuldades naturais a que é exposto) poderia se virar contra o criador.

Mary Shelley, e seu Frankenstein, talvez tenha sido a primeira a perceber aonde poderia se chegar na busca incessante da ciência por novidades que melhorassem nossas vidas. Chaplin, em 1936, já havia também mostrado ao mundo como a tecnologia (e suas engrenagens) desumanizava os indivíduos em Tempos Modernos. Metropolis, Admirável Mundo Novo... e tantos outros também são exemplo do que pode ser conceituado como Utopias Negativas.

Mas, longe do mundo das artes, muita gente se debate com este tema. A própria ciência estabelecendo uma crítica a ela própria. E à tecnologia que a ronda.
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Em fins do Sec. XIX o anarquista russo Mickhail Bakunin já sugeria, no livro Deus e Estado, que a ciência, mesmo se definida como neutra e racional, estaria nas mãos de poucos e a serviço da manutenção da ignorância para a maioria da população(1).

Nesta mesma direção crítica surge o livro Vigiar e Punir, do filósofo Michel Foucault, no começo dos anos 70 do Sec. XX. Ali, Foucault vai mostrando, capítulo a capítulo, como vão se construindo no decorrer dos séculos as técnicas de disciplinamento e controle social.

"O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam"(2).
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A procura de um instrumento perfeito para perceber todos os movimentos faz lembrar o Olho de Sauron, da Terra Média. Mitos a parte, é uma ferramenta destas que aqueles que se encontram no poder devem procurar.

"O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar a tudo ver permanentemente. Um ponto central seria ao mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas, e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido: olho perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem"(3).

A teletela orwelliana seria um desses aparelhos. O panóptico foucaultiano na forma eletrônica. Seu análogo em nossa sociedade, começo do Sec. XXI, pode ser o aparelho de TV, que possibilitaria uma espécie de vigilância constante e efetiva, tendo em vista que o vigiado (através dos meios de controle existentes) não percebe que é vigiado. E além de tudo sente prazer na relação com o aparelho. Prazer no sentido anotado pela nossa contemporânea, professora da UFRJ, Fernanda Bruno.

Para ela a vigilância em nossa sociedade vai se naturalizando através de todo um manancial tecnológico. Objetos concretos como câmeras de segurança, celulares com câmeras, ou microfones, se misturam a elementos do ciberespaço como redes sociais (Orkut, Myspace) e sites de compartilhamento de fotos ou vídeos (Flickr, YouTube), formando um emaranhado complexo onde o espetáculo, o voyerismo, e o exibicionismo se confundem com a vigilância propriamente dita.

"O caráter multifacetado da vigilância se faz notar nos afetos que hoje mobiliza: se por um lado ela se justifica ou se exerce pelo medo e pela promessa de segurança, ela também mobiliza ou expressa todo um circuito de libidos, prazeres e desejos. Devemos lembrar que a vigilância não é apenas herdeira da cinzenta maquinaria industrial-disciplinar, da empoeirada burocracia estatal e das luzes esclarecidas do Iluminismo. A vigilância também herda as cores e os prazeres da cultura do espetáculo que floresce junto com as cidades modernas"(4).
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Mesmo com toda complexidade em jogo, considero que não podemos deixar de emitir opiniões, mesmo que sejam embrionárias. Também não podemos deixar de agir.
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Não desejo uma teletela em meu quarto, nem em meu bolso. Portanto é preciso analisar aonde está nos levando todo este processo de naturalização da tecnologia. Nortear-se através de uma ética humanista neste momento é mais do que necessário.

Sejamos lúcidos o suficiente para compreender a advertência de Orwell. Sejamos atentos às advertências dadas pela história, como a do russo Pietr Kropotkin, por exemplo, a respeito das mudanças que ocorriam durante a Revolução Industrial do Sec. XIX:

"Mesmo quando alguns advertiram mais tarde que a divisão do trabalho, em vez de enriquecer a nação, só enriquecia ainda mais os ricos, e que o trabalhador, reduzido a fazer durante toda a sua vida a décima parte de um alfinete, se embrutecia e caia na miséria, o que os economistas oficiais diziam? Nada"(5).
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C.B.
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Referências
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0 - ORWELL, George. 1984. Encontrado em http://www.scribd.com/doc/3623124/George-Orwell-1984-ptbr, acesso em 24 de Maio de 2009.

1 - “O governo da ciência e dos homens de ciência, ainda que fossem positivistas, discípulos de Auguste Comte, ou ainda discípulos da escola doutrinária do comunismo alemão, não poderia ser outra coisa senão um governo impotente, ridículo, desumano, cruel, opressivo, explorador, malfazejo”. (Deus e O Estado, Mikhail Bakunin).
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2 - FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. Pag. 153.

3 - FOUCAULT, apud, Pag. 158.

4 - BRUNO, Fernanda. Controle, flagrante e prazer: regimes escópicos e atencionais da vigilância nas cidades. Encontrado Online na Revista Famecus, em http://revcom2.portcom.intercom.org.br/index.php/famecos/article/view/5554/5038, acessado em 22 de Maio de 2009.

5 - KROPOTKIN, Pietr. A Conquista do Pão. Lisboa: Guimarães Editores, 1975. Pag. 227.

3 comentários:

Anônimo disse...

Nada mais estranho/ repugnante do que o controle total intentado na sociedade pós-moderna, que reflete no assentimento pessoal e intransferível de todo este processo.

Processo este no qual as pessoas se submetem prazerosamente às ‘carícias’ ensejadas pelo sistema capitalista que é – por si só – de pura exclusão social...

a recusa ao pertencimento neste sistema é uma das possíveis alternativas diante do discurso da servidão/ submissão prazerosamente voluntária!

Adailton disse...

Seria interessante se todos os que se discortinam diante das câmeras e distribuem doses de sua privacidade pela a web, por exemplo, tivessem plena conciência dos riscos e implicações desses atos. E mais ainda, que só esses tivesse aquilo que desejam exposto.
Infelizmente não é assim que se processa. A cada dia temos uma parcela maior de nossas vidas munitorada, quer seja através de simples câmeras de trânsito espalhadas pelas ruas, quer seja através do contôle dos nossos conteudos que circulam na grande rêde.
Eu sou contra o contrôle exagerado, pois se o homem já demonstrou em diversas oportunidades não ser confiavel, porque o uso que faram desse poder o seria?

Anônimo disse...

Em O Show de Truman o vendedor de seguros Truman Burbank (Jim Carrey) vive em Seaheaven, um paraíso terrestre onde todos parecem conviver em perfeita harmonia.Mais ele tem sempre a impressão que é constantemente vigiado.Decide investigar e descobre que sua vida é um show de tv.Acho que é mais ou menos isso que se refere o texto a diferença é que na maioria das vezes nos permitimos fazer parte desse show.